No dia em que se comemoram 40 anos sobre a histórica Revolução dos Cravos, que finalmente colocou Portugal na rota da democracia, não posso de deixar de transcrever o artigo que foi publicado no site do Jornal "Público" em 8 de Abril de 2014, e que ilustra bem o estado em que Portugal chegou. Quarenta anos depois apresentamos uma democracia podre, que mais se assemelha a uma ditadura disfarçada, ainda por cima integrados numa União Europeia que, de união tem muito pouco....
Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora portuguesa, ilustra bem a situação em que Portugal se encontra, no discurso que proferiu, aquando da entrega do prémio APE (Associação Portuguesa de Escritores).
Crónica de opinião transcrita do site do Jornal "Público", de 8 de Abril de 2014:
= Alexandra Lucas Coelho recebeu nesta segunda-feira (7 de Abril de 2014) o prémio
APE (Associação Portuguesa de Escritores) pelo romance «E a Noite Roda».
Este é o texto do discurso que fez, no qual critica o actual poder político. (em Portugal) =
Este é o texto do discurso que fez, no qual critica o actual poder político. (em Portugal) =
''«E a Noite Roda» não é sequer o melhor romance que eu
podia ter escrito entre 2010 e 2011, os meus últimos meses em Portugal e o meu
primeiro ano no Brasil. Não foi, certamente, o que muita gente achava que eu
devia ter feito. É apenas o que eu precisava de fazer naquele momento para sair
do ponto em que estava. O importante não será fazer o melhor que sabemos, mas o
que precisamos de fazer, mesmo não sabendo, para sair do nosso limite. Aquilo
que nos desloca se estamos fixos, que nos fixa se estamos deslocados.
Estou a voltar de três anos e meio a morar no Brasil. Um
dia, a meio dessa estadia brasileira, pediram-me que gravasse um excerto de um
conto de Clarice Lispector para o site do Instituto Moreira Salles. Era um
conto em que a protagonista era portuguesa, daí o pedido, que a voz coincidisse
com o sotaque. Como detestei aquela portuguesa do conto da Clarice. Tudo na
boca dela era inho e ito. Era o Portugal dos Pequenitos com a nostalgia das
grandezas. Aquele que diz “cá vamos andando com a cabeça entre as orelhas”, mas
sofre de ressentimento. O Portugal que durante 40 anos Salazar achou que era
seu, pobre mas honesto-limpo-obediente, como agora o Governo no poder quer
Portugal, porque acha que Portugal é seu.
Estou a voltar a Portugal 40 anos depois do 25 de Abril, do
fim da guerra infame, do ridículo império. Já é mau um governo achar que o país
é seu, quanto mais que os países dos outros são seus. Todos os impérios são
ridículos na medida em que a ilusão de dominar outro é sempre ridícula, antes
de se tornar progressivamente criminosa.
Entre as razões por que quis morar no Brasil houve isso:
querer experimentar a herança do colonialismo português depois de ter passado
tantos anos a cobrir as heranças do colonialismo dos outros, otomanos,
ingleses, franceses, espanhóis ou russos.
E volto para morar no Alentejo, com a alegria de daqui a
nada serem os 40 anos da mais bela revolução do meu século XX, e de o Alentejo
ter sido uma espécie de terra em transe dessa revolução, impossível como todas.
Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da
República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos
representa tudo o que associo mais ao Salazarismo do que ao 25 de Abril, a
começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um
império perdido.
E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho,
pois, que este Presidente se faça representar na entrega de um prémio
literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país
não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as
orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.
Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que
irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto
em vez de mais baixo. Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos
seres para a morte, que somos, que somos.
Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e
pelo meio tudo é ganho, porque só a perda é certa.
O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja
amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo,
com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em
Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o Governo nos mandar
embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.
Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui
representado hoje, que este país não é seu, nem do Governo do seu partido. É do
arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio
Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no
Brasil, dando conta do pesadelo que o Governo de Portugal se tornou: Siza
dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo
que este Governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação,
Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou
simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas
que a História não confina a míseras notas de pé de página”.
Este país é dos bolseiros da FCT (Faculdade de Ciências e Tecnologia) que viram tudo
interrompido; dos milhões de desempregados ou trabalhadores precários; dos
novos emigrantes que vi chegarem ao Brasil, a mais bem formada geração de
sempre, para darem tudo a outro país; dos muitos leitores que me foram
escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a perguntar que conselhos podia eu
dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam emigrar.
Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha mandado,
quando um membro do seu Governo disse aquela coisa escandalosa, pois que os
professores emigrassem. Ir para o mundo por nossa vontade é tão essencial como
não ir para o mundo porque não temos alternativa.
Este país é de todos esses, os que partem porque querem, os
que partem porque aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor com eles,
forte, bonito, inventivo. Conheci-os, estão lá no Rio de Janeiro, a fazerem
mais pela imagem de Portugal, mais pela relação Portugal-Brasil do que qualquer
discurso oco dos políticos que neste momento nos governam. Contra o cliché do
português, o português do inho e do ito, o Portugal do apoucamento. Estão lá,
revirando a história do avesso, contra todo o mal que ela deixou, desde a
colonização, da escravatura.
Este país é do Changuito, que em 2008 fundou uma livraria de
poesia em Lisboa, e depois a levou para o Rio de Janeiro sem qualquer ajuda
pública, e acartou 7000 livros, uma tonelada, para um 11.º andar, que era o que
dava para pagar de aluguer, e depois os acartou de volta para casa, por tudo
ter ficado demasiado caro. Este país é dele, que nunca se sentaria na mesma
sala que o actual Presidente da República.
E é de quem faz arte apesar do mercado, de quem luta para
que haja cinema, de quem não cruzou os braços quando o Governo no poder estava
a acabar com o cinema em Portugal. Eu ouvi realizadores e produtores
portugueses numa conferência de imprensa no Festival do Rio de Janeiro contarem
aos jornalistas presentes como 2012 ia ser o ano sem cinema em Portugal. Eu fui
vendo, à distância, autores, escritores, artistas sem dinheiro para pagarem
dívidas à Segurança Social, luz, água, renda de casa. E tanta gente esquecida.
E, ainda assim, de cada vez que eu chegava, Lisboa parecia-me pujante, as
pessoas juntavam-se, inventavam, aos altos e baixos.
Não devo nada ao Governo português no poder. Mas devo muito
aos poetas, aos agricultores, ao Rui Horta, que levou o mundo para
Montemor-o-Novo, à Bárbara Bulhosa, que fez a editora em que todos nós, seus
autores, queremos estar, em cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais
hostil, com margens canibais.
Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não
é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para
ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por
mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.
Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não viva
100 anos, tudo corre para acabar, sabemos. Mas enquanto isso estamos vivos, não
somos sobreviventes.
Este romance também é sobre Gaza. Quando me falam no
terrorismo palestiniano confundindo tudo, Al-Qaeda e Resistência pela nossa
casa, pela terra dos nossos antepassados, pelo direito a estarmos vivos, eu
pergunto o que faria se tivesse filhos e vivesse em 40km por seis a dez de
largura, e antes de mim os meus antecedentes, e depois mim os meus filhos, sem
fim à vista. Partilhei com os meus amigos em Gaza bombardeamentos, faltas de
água, de luz, de provisões, os pesadelos das meninas à noite. Depois de eu
partir a vida deles continuou. E continua enquanto aqui estamos. Mais um dia
roubado à morte.'' =
Cortesia do jornal "Público" - O meu país não é deste Presidente, nem deste Governo
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